domingo, 3 de março de 2013

A PORTA


         A porta ainda existe e isso me foi confidenciado por dois velhos galegos. Estávamos em aldeia ao Norte de Pontevedra, os três últimos em festa de acaso. Bebêramos, queimada à moda celta, a escaldante aguardente de Orujo, ouvíramos gaitas quase escocesas, porque galegas, alguém recitara Gil Vicente e Rosália de Castro. Como é saudável, e era tempo de ditaduras, falamos mal de três governos (o da Espanha, o de Portugal e um terceiro, de interesse geral da raça).Quando todos se foram, Xosé pôs o pote com o caldo sobre as brasas, reativou o fogo e, anfitrião, serviu-nos estórias.

                  Das muitas, guardei a da porta, confirmada inteiramente por Manolo, seu primo. A aldeia está na beira de um dos caminhos de Santiago – exatamente o que levava gentes de Braga e dos castros minhotos ao santuário do Apóstolo – e era estação de descanso. Um pouco antes, aproveitando colina enganadora, o diabo abriu desvio, pavimentado a granito rosa, elevou boa muralha e decorou a Porta com belo anjos góticos. Pela estrada, espalhou agentes. Eles se misturavam aos peregrinos e falavam da bela cidade habitada não só de anjos mas também de anjas, onde chovia vinho velho, que descia pelos beirais e era despejado, da boca das gárgulas à garganta ansiosa de bailarinas moiras. Mas também, quando lhes convinha, desprezavam o apelo da luxúria, e tocavam no nervo da soberba: falavam de uma igreja nova, à qual só tinham acesso os de nenhum pecado, carrancudos santos, gente de autoflagelo diário. A tais santarrões, os propagandistas prometiam o êxtase arrancado a açoite, pústulas a beijar, refrigérios de fel. “Arranjavam mais fregueses entre os beatos do que entre os bons pecadores” – explicava Xosé – “e desconfio que ainda hoje seja assim”. Todos os que eram seduzidos mudavam a cor da face. Havia frades que, bem prevenidos, os identificavam e procuravam demovê-los; mas aqueles que haviam sido tocados pelos encantos prometidos, resistiam. A um monge irlandês, que viera de Aramagh, crucificaram-no de maneira cruel. Como não houvesse madeiro, riscaram a cruz em um menir celtíbero, e o amarraram à pedra com avios de couro. Ali o encontraram, no ano seguinte, a calva da tonsura servindo de ninho a passarinhos pelados, os ossos quase incrustados na rocha. Foi vitima dos beatos que não aceitaram a sua advertência de que é preciso desconfiar dos intolerantes.

“Ainda hoje” – confirmou Manolo – “se a gente olhar bem, e o menir está de pé, vê a sombra em forma de cruz, uma espécie de sudário de pedra. Dizem que, em julho, quem passa por ali ouve imprecações em latim: é o bom monge prevenindo contra a ilusão dos místicos”.

                          A alguns o diabo atraía com o som de flauta doce. Quem ouvia seus sons, assegurava que a tocavam lábios de mulheres virgens e ansiosas. Por isso, conta a tradição, muitos peregrinos selavam seus ouvidos com cera e breu, para não ouvir os acordes excitantes. Outros mandavam amarrar suas pernas à montaria, porque os cavalos eram imunes ao apelo das flautas. Quando chegavam à Porta, as notas ficavam mais intimas, eram pouco mais do que sussurros. A lenda é cheia de exemplos edificantes de resistência. Houve – e disso há um romance peninsular – o caso de um cavaleiro que se castrou no caminho de Santiago, não por santidade, mas para não trair o amor de sua dama. A melodia não desviava os eunucos da rota.

                      E havia outros recursos do diabo, como o da moeda de ouro. Era uma bela peça que duas mãos não cingiam. Aparecia à beira do caminho e, quando tocada, rolava pelas trilhas de cabras monteses. Os homens corriam detrás do ouro. No fim havia o buraco, em cujo fundo a moeda brilhava. Os homens desciam o poço e iam dar na grande caixa-forte, de onde nunca mais saíam.

                   E o que havia detrás da Porta? Xosé e Manolo dizem que ninguém soube ao certo. Houve alguns que disseram ter regressado, mas traziam relatos não confiáveis. E não havia uma só Porta, mas muitas portas. Há lendas bretãs que falam de atalhos para Santiago, que iam dar no inferno. Topônimos alpinos sugerem outros alçapões do diabo, na beira do caminho que saia de Augsburg.

                  “O caminho de Santiago” – resumiu Xosé – “são todos os caminhos do mundo, e a porta do inferno está em cada passo. Eu penso assim. Por isso estou de acordo com Manolo. Acho também que os pecadores que nela entram costumam dela sair. Os que não saem nunca são os que se sentem santos. O inferno foi feito para os que não perdoam”.