segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O CIGARRO MOLHADO

A súbita, ou insistente, lembrança de coisas ínfimas, costuma ser a chave da memória, para que revivamos momentos fortes da vida. Pode ser um cigarro que não se acendeu, por estar úmido, ou o esbarrão em qualquer desconhecido, na saída de metrô, em Roma ou Madri. No seu caso, foi o cigarro. Era madrugada em tempo de desesperado apego ao fumo, e  chegara ao hotel, com a roupa totalmente molhada pelo aguaceiro inesperado. Viera do restaurante, na cidade desconhecida, na mesma rua do hotel, mas a quatro quarteirões, o que serviria a uma boa caminhada.
         Havia encontrado o restaurante, vietnamita, por acaso, e a curiosidade o levara a pedir  meia dúzia de pratos exóticos, começando pelos invariáveis enrolados de ervas em papel de arroz. Mas a situação inusitada, a de entrar em restaurante oriental, passada a meia noite, e em país do norte da Europa, nada  diria, se não fosse o cigarro molhado pela chuva, enquanto , ainda jovem, corria o meio quilômetro para chegar ao hotel garni. A vantagem desses pequenos hotéis, sem porteiros durante a noite, é que você recebe suas duas chaves, a da porta principal e a do quarto, e quase nunca  vê alguém. Assim, pôde entrar, tirar a roupa – e procurar o cigarro , a fim de se repor da corrida. Para o fumante, até o cansaço é um apelo à nicotina.
          Retirou o cigarro do maço, e viu que todos eles estavam encharcados, como também algumas cédulas que levava no bolso do outro lado do paletó. Achou que bastariam duas tragadas, e retirou de outro bolso o belo isqueiro de prata, um de seus poucos e  pequenos luxos. A chama era forte, chama para acender charutos, e levou-a à ponta do cigarro. De nada adiantou.Só sentiu o aroma alterado do fumo, que o incitou ainda mais. Decidiu, então, vestir o terno de reserva e esperar, já embaixo, a chuva passar. Iria buscar um bar que estivesse aberto, a fim de comprar o maldito cigarro, sem o qual não poderia dormir. Assim fez. Havia mais ou menos meia hora que esperava, a chuva continuava e ele estava em estado de quase desespero, olhando pela fresta da porta,  disposto a molhar-se outra vez – mas se lembrou de que, então, não teria o que vestir ao deixar o hotel na manhã seguinte.
         Foi quando a porta se abriu para o desconhecido. Viu logo que estava bêbado, pelo cheiro e pela voz enrolada, com que disse boa noite. Respondeu, com timbre neutro, ao cumprimento; não gostava  de conversar com estranhos. Mas a situação era diferente e o desconhecido vinha protegido por uma sólida capa de gabardine: quem sabe teria um cigarro seco que pudesse aliviá-lo?
         O outro  deu o cigarro, mas resolveu contar sua história, engasgadas de brandi as palavras. Convidou-o a seu quarto, mas disso ele soube esquivar-se, mostrando o pequeno salão ao lado, em que serviriam o café da manhã, onde poderiam falar-se. O recém-chegado despejou a desgraça: sua mulher o deixara, havia poucos dias, e, pelo que soubera, ela o trocara “por um encardido sulamericano”. Tratou de falar muito rápido, para que o desconhecido não lhe identificasse o sotaque, e agradeceu, pelo menos naquele momento, a circunstância de sua ascendência européia, de pele e olhos claros; não podia ser visto, pelos  olhos magoados do interlocutor, como um mestiço schmutzig, como o nórdico  se referira, com desdém, ao seu rival.
          O que ele lhe poderia dizer? Pensou em ser franco:  nada tinha a ver com aquilo. Que o outro procurasse um amigo velho, o pastor ou o padre, conforme sua crença e, no último caso, um psiquiatra que lhe receitasse uma pílula qualquer de esquecimento, ou do regozijo. Lembrou-se de um colega brasileiro, que aconselhava, em casos semelhantes, arranjar outra mulher imediatamente, nem que fosse por pouco tempo,  mas mulata: ninguém melhor do que uma mulata para curar dor de cotovelo.
            Pediu desculpas por não saber ajudá-lo, em  questão tão pessoal e íntima. Se ele quisesse um conselho sobre o mercado de capitais, talvez  lhe pudesse ser útil, mas não em assuntos como aquele. Ousou saber de que cidade era o homem triste e bêbado, e ele disse. Disfarçou o olhar, para não enfrentar o rosto do outro, e lhe perguntou o nome. Ao ouvi-lo, teve certo desassossego. Para ter certeza, jogou seu verde, ao aconselhá-lo a arranjar imediatamente uma mulata que o consolasse naquela circunstância.
            Não soube se o outro sorriu, ou se fez uma careta, posto que  mirava os  sapatos ainda úmidos que lhe esfriavam os pés.
            - Mas ela é mulata, meu caro, do Haiti, e de olhos azuis - disse o bêbado.
            Concluiu que nada podia realmente fazer, deu boa noite, subiu. Fechou bem a porta do quarto, dando duas voltas na chave, arrumou a maleta, com a roupa molhada envolvida no exemplar de “Die Welt” daquele dia, e, como já pagara a diária, como é costume nesses hoteizinhos, em lugar de sair às seis, partiu logo que estiou. Ao passar pela porta não olhou para o pequeno salão de café, mas teve a certeza de que o outro ainda estava por lá, esparramado no sofá de espera.  Tomou o primeiro trem de volta a Berlim, onde o aguardava uma mulata haitiana, de belos olhos azuis. E é claro, que depois daquilo, não esperou uma semana para trocar de país, levando a mulher para  o seu novo destino.
          
        




quarta-feira, 21 de setembro de 2011

DUAS MIL LUAS

- “Amanhã fará 40 anos que a espero, todas as sextas-feiras, neste mesmo banco de jardim. Amanhã não voltarei mais a  sentar-me aqui” – disse, de repente, o homem. Não posso dizer o velho senhor, porque, sendo mais ou menos de minha idade, eu não o via senão jovem, como jovem sempre me sinto. Não fosse essa ilusão, que nos anima, e que poucos confessamos, a velhice seria uma insuportável agonia, a agonia que devem sentir os condenados à morte, no corredor de espera, em alguma prisão do Texas. Enfim, todos somos condenados à morte, mas quando chega o amanhecer de cada dia, sentimo-nos indultados – quando mais não seja para mais uma jornada, sempre bela, faça o tempo que fizer. Foi o que pensei – e sou rápido em pensar, as cenas sempre se sucedem na minha mente como se o operador de cinema de antigamente, ao passar o filme, acelerasse o movimento da manivela, e o lerdo cavalo de D. Quixote passasse a galopar.
            Tudo isso eu pensei, enquanto o homem fazia uma provocadora pausa e me olhava, desafiador. Eu sentara no banco ao lado, ofegante pelo calor deste absurdo fim de inverno.  Talvez supusesse que eu lhe desse a corda da curiosidade, mas me fiz de desinteressado:
            - O senhor me está dizendo que amanhã já é sexta-feira? Que estranho, eu pensei que hoje fosse ainda quarta. Estou atrasado – comentei, sem perceber que lhe oferecia a deixa.
            - Atrasado sempre estive eu, meu amigo – respondeu. – Atrasado nos negócios, atrasado no amor, atrasado na vida. Sempre me agarrei ao perdido, nunca fui capaz de desistir do que não seria meu, e de buscar o que a vida me poderia facilmente dar. E aqui estou, há quarenta anos esperando a mesma mulher, semana a semana, nestas duas mil luas.
                  Observei, então, que ele se adiantara: por que não esperara o dia certo, a sexta-feira, para então desistir da espera? Explicou-me que guardava uma esperança, já que tomara a decisão: a de ficar sentado no bar da esquina, olhando de longe. Se ela aparecesse, embora isso lhe parecesse impossível, ele não iria encontrá-la: sairia da pequena varanda do bar pela rua lateral. Seria a sua vingança. Afinal, ela o deixara plantado durante quarenta anos; se aparecesse por acaso, ou movida de alguma ilusão,  teria a surpresa de sua ausência. Talvez - ele prelibava a possível desforra - ela, depois de tantos anos, quisesse vê-lo, e confessar que o amara durante todo o tempo, e se arrependera de faltar ao encontro daquela sexta-feira de 1971.
            Ouvi, calado, mas decidi azedar o projeto do cavalheiro. E se, na verdade, ela não houvesse comparecido ao encontro por uma fatalidade: a morte de um parente, talvez a do próprio marido, se fosse casada, ou, com maior razão, se um filho ou filha tivessem sofrido um acidente?
           Ele ficou subitamente sério, mas me esclareceu que, naquele primeiro e único encontro que tiveram, sem conclusão razoável (ele lhe dera um beijo muito rápido e discreto, que apenas roçou seus lábios, me disse), ela lhe explicou que nunca fora casada, e isso parecia certo, porque era ainda jovem, deveria ter, no máximo, uns 25 anos.
          - E se ela tiver morrido? As pessoas morrem, meu amigo, em qualquer idade e sem aviso prévio.
          O homem ficou mais sério ainda e me perguntou se eu era, por acaso, muito infeliz. Disse-lhe que era um homem comum, com a dose habitual de aborrecimentos: dores reumáticas, anúncio de catarata, patrimônio minguado, aposentadoria indecente e o reles emprego de agente de seguros de automóveis, para garantir o pão de cada dia.
           Quando, ao responder à sua insólita pergunta, eu lhe disse que não, eu não tivera amor algum, que tivera alguns casos fortuitos que não chegaram ao terceiro encontro, pois eu era muito exigente e queria mulher que fosse tão bela quanto inteligente, e que me parecesse mais ingênua do que devassa, ele se levantou. Olhou-me com desdém e desafio e me disse que eu lhe estragara não só o dia como a vida, que eu destruíra seus quarenta anos de ilusão com um racionalismo calhorda, que eu não devia lhe ter dirigido a palavra.
           - Desculpe-me, lembrei-lhe, quem falou primeiro foi o senhor. Por isso eu não gosto de conversa com estranhos.
           - Nem eu – respondeu-me, enquanto, forçando as pernas já naturalmente preguiçosas, o corpo próximo da obesidade, o velho  - percebi que era, pelo menos no passo indeciso, bem mais velho do que eu - saiu da praça. Pelo lado contrário do bar, no qual pretendia vigiar a manhã seguinte, com seu banco e o espectro de uma mulher que talvez nem sequer houvesse existido. Foi o que pensei, enquanto retornava à minha vida normal, de homem tranqüilo, com minha família, minha carreira e mais ou menos feliz. Não me arrependi de lhe haver mentido. E fiquei com a forte suspeita de que ele também mentira, e quisera, apenas, com a sua história, ter a atenta companhia de um ser humano. É provável, e pode ser improvável. Como diria Cervantes, vale.
             

terça-feira, 6 de setembro de 2011

OS AROMAS DO MUNDO

Era, como me disse na primeira vez que nos vimos, um europeu degenerado. Seu caráter, confessava com saudade, fora amolecido pelo calor dos trópicos, e ele os conhecia “na cintura baixa do mundo”, de um lado e do outro. Vivera a boa latitude sul na América, na África e na Ásia, e guardara melhores lembranças de Madagascar, aonde fora como funcionário do colonialismo francês, menos por necessidade e mais pelo exotismo da grande ilha. Ali se convertera a vagabundagem bem amparada pela renda de vinhedos da Gironda, explorados por sua família desde os tempos do ducado de Aquitania.

“Descobri que, nos trópicos, os sentidos se aguçam, porque as coisas têm mais essência. Não me lembro bem dos aromas de nossa casa, e os meninos sempre têm narinas sugadoras, mas não me esqueço do cheiro das mestiças dos portos de Majunga e Tamatave”, me dizia, em um bar da Schiffamtsgasse, em Viena, bem perto de Danúbio.

Tenho sempre o espírito desarmado diante dos estranhos, porque me tocou viver muito entre eles e ser um deles. Naquele tempo eu morava em Praga e ia com freqüência à Áustria. Ele estava de passagem, e fiel a si mesmo, buscara o cais fluvial. “Quem não tem mar se arranja com os rios”, me falava enquanto tomávamos excelente vinho romeno.

E continuou a defender a tese de que só vale a pena viver nos trópicos, mas enquanto se pode bem desfrutar dos prazeres do mundo. “Não são apenas os cheiros: são também as cores. Não há delicadeza nos tons; são agressivos. Tampouco se separam bem uns dos outros, as cores acompanham a vontade geral de promiscuidade e de troca de identidade: há verdes que amarelam, e amarelos que invadem o campo do azul. Agora, quando chegam as cataratas aos olhos, para que servem os trópicos? Quando bambeiam todas as pernas do homem, por viver entre as mulatas da Bahia e as lisas indochinesas? Não entendo como, na sua idade você está aqui na Europa.”

Não me convinha , então, revelar-lhe os motivos. Para certos assuntos, os estranhos devem continuar estranhos, por menos cautelosos sejamos. Do vinho, violando o bom gosto e as cautelas digestivas, passamos para a cerveja e salsichas, e nos despedimos no Ring, com a indiferença daqueles que não esperam reencontros.

Mas nos revimos. Missão profissional me levara a St. Jean de Luz, no país Basco francês. Ali se vive enganosa segurança e eu, que devia encontrar alguns bons rapazes de Euzkadi-Sul, tinha de me cuidar para não dar bandeira aos agentes espanhóis que deviam estar de olho em meus contatos. Só o vi, felizmente, depois de cumprida a tarefa. Estava montado em velha motocicleta e chegou à estação ferroviária no momento em que eu descia do táxi. Fez-me trocar o destino e seguir com ele até sua terra. Despachou a moto para o destino que era o seu e que me impunha, e se disse livre para um copo de vinho, se eu pagasse. “Da última vez, a conta foi minha, você se lembra? Agora é a sua vez”.

Enquanto esperávamos o trem tomamos vinho navarro, porque ele já não se fiava dos burdôs. “Ainda bem que não há mais família, nem há mais vinhedos. Vendi-os há tempos. Agora os irrigam tanto, para que produzam, que o vinho perdeu a postura.”

Contou-me que a fortuna acabara. Por sorte não se casara, não deixava herdeiros na miséria. Fizera a sua parte, gastando o dinheiro em viagens. Só lhe restava pequena propriedade, da qual não podia desfazer-se, e que recebia agora seus cuidados. Eu iria vê-la. Contava também que com a venda dos bens maiores, levantara dinheiro para derradeira viagem em torno do mundo, em latitude certa e preferida: na altura do paralelo 20, um pouco acima do trópico de Capricórnio.

Não fora boa a volta. A mente ainda estava acesa para certos prazeres, mas os nervos e músculos já se encontravam afeitos ao desconsolo. “Você já ouviu falar em holografia? É um sistema novo que serve para reproduzir imagens em três dimensões. As belas malgaches que eu vi, agora, eram como dessas estatuas de sombra. Eu as via e as queria, mas meus braços não as tocavam.”

Cheguei à aldeia, que um dia fora a vida do derruído castelo da família, na garupa de sua moto. Algumas pessoas saudavam-no com reverência, outros fingiam não vê-lo. “Infelizmente não posso oferecer-lhe hospitalidade, você a recusaria. Eu mesmo, no principio, sentia-me mal. Mas, como é a única propriedade inalienável que me deixaram os antepassados, tenho que me acostumar a pernoitar ali”.

A propriedade era sólida, de granito escuro, tosco, as quinas alisadas pelo sopro dos séculos, um amplo e majestoso tumulo, quase uma capela, adornada por anjos de olhos baixos, jarros sem flores, a relva descuidada em torno do jazigo.

“Ajeitei-o por dentro, dá para espichar as pernas e cozinhar a sopa. O pároco quis expulsar-me, mas o juiz, livre-pensador, reconheceu-me o direito. É uma espécie de adiantamento do legado”, explicou. “Afinal, no futuro, eu vou ficar aqui.”

CAÇA NOTURNA

Era um pequeno país, ocupado por tropas inimigas. Como ocorre nessas situações, não faltavam os colaboracionistas canalhas. Um deles, antigo assaltante à mão armada, e que cometera vários latrocínios, fora libertado da prisão por ordem do governo títere, a fim de integrar a equipe de interrogadores da polícia política, comandada pelos oficiais estrangeiros.
               Não era um brutamontes comum.  Tratava-se de  criminoso frio, senhor de raciocínio rápido e lógico. Tinha suas leituras e conhecia, como poucos, as histórias reais e fictícias de grandes matadores. Um só homem seria capaz de interromper seus atos abjetos, e esse homem fora seu companheiro de delitos e de cárcere. Quando soube da crueldade com que ele agia como torturador de suspeitos de pertencer à pequena e heróica resistência, o antigo companheiro decidiu que deveria matá-lo. Não pertencia a qualquer grupo; na verdade, até então lhe era indiferente ser governado por nacionais ou estrangeiros. Como sempre agira fora da lei, não se sentia membro da sociedade e, menos ainda,  patriota. Mas não podia aceitar que o companheiro se misturasse aos policiais, a eles servisse, para seviciar pessoas que estavam também contra a lei, como eles sempre haviam estado.
               Poderia armar-lhe uma emboscada, mas sabia que, astuto como sempre, dificilmente cairia no laço. Era preciso agir como agiam os resistentes, e seria melhor atribuir a eles a execução. Primeiro, porque isso o protegeria. E depois, pensando bem, como eram os resistentes jovens de grande coragem, seria uma forma de ajudá-los, na construção de sua fama e  futura glória. 
                 
                   Durante muitas semanas, usando vários disfarces, seguiu-o em sua rotina. Estava sempre protegido por um ou dois policiais de escolta, e isso tornava mais difícil construir  plano seguro para o ato necessário. Se matasse quem o estivesse protegendo – o que teria que ser feito antes – haveria tempo para que ele percebesse e reagisse, o que seria muito perigoso. E, mais: como se tratasse de um vil traidor, vivia junto com outros sujeitos também canalhas, em pequeno quartel da Polícia. Não tinha como atingi-lo em casa, e dormindo, de preferência. Mas a grande arma do caçador é a paciência. Uma noite, quando já desistia da espera, em ponto conveniente do caminho, notou que seu guardião daquela noite estava bêbado. Com a boa e silenciosa arma, a bola de bilhar dentro de uma meia de cano longo, os passos ligeiros de felino atrás da presa, aproximou-se e deu o golpe seco, um pouco acima da nuca do bêbado que cambaleava. O outro voltou-se rapidamente, ao ouvir o baque do corpo sobre a calçada.  A rua estava deserta, eram apenas os dois. T., o torturador, reconheceu-o logo. Na hesitação daqueles segundos, N., o justiceiro, fingiu-se assustado e surpreso, como se, só naquele momento, soubesse de que se tratava do antigo comparsa. A luta foi curta. T. levou a mão ao coldre, sacou a arma, enquanto N. o atingia com a mesma funda, no queixo, que se abriu, jorrando sangue. T. disparou dois tiros,  um atingiu N. no braço esquerdo, o outro, no pulmão.  Agarraram-se, trôpegos, ambos feridos. N. conseguiu golpear mais uma vez, embora,  a tão curta distância, sua arma fosse quase inútil. Não desistiu, e a mão direita conseguiu arrancar a arma do contendor e disparar duas vezes contra o ventre, no vão macio por debaixo das costelas, de baixo para cima.
           Os tiros haviam atraído a patrulha policial que protegia a área. “É uma briga particular”, disse T., o torturador, pouco antes de morrer. Conduziram N. ao hospital. No caminho, com muitas dores e cansaço, ele pensou bastante no que fora a sua vida e no filho que abandonara e já devia estar um homem. Quando o médico disse ao chefe dos policiais que seria melhor leva-lo logo para o necrotério, cresceu em si mesmo. Identificou-se com o verdadeiro nome, que não usava desde o primeiro assalto. Buscando reservas de força no pulmão inundado de sangue, tentou gritar,  a voz saiu curta e soturna, mas clara: Matei um traidor! Viva a nossa pátria! Médico e enfermeiros o olharam com cautelosa simpatia. Um dos policiais praguejou, o outro olhou para o teto.
           Sentiu-se repentinamente leve, cansado e sonolento. A dor passou. Em segundos, seus olhos se fecharam, e ele parecia feliz.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

GROSELHAS VERDES


Você já comeu doce de groselhas verdes? - perguntava a mocinha à outra, na lanchonete da Na Prickopé, em Praga. Era setembro de 1968, e o vento, que soprara forte pela madrugada, amainara. Olhei a jovem, que me devolveu a mirada, perturbei-me um pouco. Não havia entendido bem o sotaque, provavelmente moravo, da jovem, que falava apressadamente,  e por isso  confundira rybiz, a frutinha silvestre, com ruze, a flor. Não podia imaginar rosas verdes, nem maduras,  e por isso os meus olhos se desviaram novamente para a mesa, a uns quatro metros de distância. A outra, ao dizer que não, repetiu o substantivo e o adjetivo, afirmando que provavelmente o doce seria ácido.
          Um desses autores de best-sellers americanos, Dale Carneggie, disse que se a vida desse a alguém um limão, o remédio seria fazer uma limonada. Lembrei-me então, naquela manhã de Praga, que conhecera um homem que fizera isso, Oséas, do Leprosário Santa Isabel, perto de Belo Horizonte. Em 1959 ou 60, já não me lembro bem, havia visitado, com minha mulher, aquela colônia de enfermos, a fim de fazer uma reportagem para a Ultima Hora.
          Todas as coisas naturalmente horríveis eram mais horríveis naquela cidade. Nada faltava ao conjunto, na verdade uma pequena cidade,  com seus ambulatórios e suas enfermarias, os grandes refeitórios e algumas cozinhas, exploradas particularmente por certos internos, que forneciam melhora de comida para tornar mais agradável a alimentação do Governo: pedaços de frango, verdura cozida, bagres e acarás do Rio Paraopeba,  torresmos. Wania, que não fizera ainda 18 anos, ficou muito triste quando visitamos o lupanar,  na hora do crepúsculo, quando as  prostitutas se preparavam para “fazer a vida” na noite que chegava. Maquiavam-se,  refazendo, a crayon,  as sobrancelhas perdidas, desenhando a linha de lábios sobre bocas dilaceradas, ocultando as orelhas mutiladas com as madeixas dos cabelos naturais e dos cabelos postiços.
            Mas nada, nada mesmo, nos marcou tanto como a paixão de Oséas pela vida. Nós o havíamos visitado pela manhã,  prostrado em seu leito, sofrendo de outras doenças além da lepra, como  diabetes e nefrite crônica. Talvez não tivesse ainda cinqüenta anos, e se encolhia sobre a cama, colocada ao lado da janela, de onde  podia ver as flores - rosas, jasmins do cabo, damas da noite - crescerem com o seu perfume.
       “As flores, nos disse, com tímido sorriso, são como as mulheres, mudam de cheiro enquanto crescem. Tenho pouco olfato, a doença me comeu as narinas, mas o pouco que eu tenho mostra isso. Os botões têm um perfume; as flores abertas, outro; e o melhor de todos os perfumes é aquele exalado quando as flores começam a ficar maduras. Parece até mesmo que uma coisa compensa a outra: quando as flores vão perdendo a cor, soltam  perfume bem suave, e muito mais chamativo”.
            Oséas conseguira   o transmissor de rádio, montado sobre  plataforma giratória, e o colocava de forma a operá-lo, mesmo deitado. Aprendera inglês e espanhol, para comunicar-se com outros paises do mundo. Os radio-amadores, sabendo de seu drama, o ajudavam, e ele tinha o melhor equipamento da época. Com o que lhe restava de dedos - três em uma das mãos, dois na outra - manobrava os controles e conversava com seus colegas. Era o que lhe sobrava da vida: a voz distante, de amigos tão remotos, cujos olhos os seus jamais visitariam; a visão do céu e das flores, dos raros pássaros que freqüentavam os pequenos arbustos plantados junto à janela, dos bichinhos bem miúdos, como as abelhas e  os gafanhotos verdes, as aranhas que teciam suas redes de caça, e que ele não permitia que fossem perseguidas. A mulher, também leprosa, estava bem melhor, e dele cuidava.  A casa era limpa, arejada, embora a dona tivesse os pés inchados e provavelmente deformados, envoltos por chinelas de goma, e as mãos atrofiadas, de falanges perdidas.
         “A moça sabe - disse a mulher de Oséas a Wania - a gente se acostuma tanto a estas coisas, a este sofrimento, que se não fosse a dor, que  ataca até os ossos, não havia muita diferença entre estar aqui e estar lá fora”. E disse que nem mesmo atinavam com a deformação de seus rostos. “Como aqui ninguém é bonito, ninguém aqui é feio. Quer saber de uma coisa? Quando vejo uma pessoa com o nariz normal, as pestanas inteirinhas, as mãos com os seus dedos todos, compridos e finos como os de você, minha filha, que Deus me perdoe, me parece esquisito”.
            Ao nos despedirmos, Oséas disse gravemente que a vida sempre vale a pena. “Outro dia ouvi um primo, que veio me visitar, e eu não via desde menino, dizer para o doutor Anselmo, que veio junto, que com tanto sofrimento era melhor morrer. Eu não lhe disse nada,  mas dou a resposta a vocês. Eu quero continuar vivendo, com as minhas dores, mesmo sem poder me levantar daqui, a morféia e o resto  me gastando o corpo pouco a pouco. Eu aqui ouço os passarinhos, vejo os bichos e as flores, escuto a toada da chuva, caindo do beiral,  e ainda tenho de lambujem a conversa com os radioamadores. Você sabe que eles me contam os seus problemas? Há um, venezuelano, que me manda dinheiro de vez em quando, e eu distribuo  com os outros para a melhora de comida. O dinheiro vem pelo banco, leva meses para chegar. É um homem muito rico e  muito infeliz. E ele sempre me diz que o que eu falo com ele é que lhe dá ânimo, que não o deixa desistir. O que falo com ele? Bobagem, igual eu estou falando agora. Falo com ele para sair, procurar uma beira de córrego, olhar os peixes debaixo d’água, ver as nuvens passar, fazer bestagem, como contar as estrelas ao anoitecer. Aqui, no pequeno céu quadrado de minha janela, elas vão chegando devagar e eu vou contando. Cabem trinta e seis com a janela bem aberta,  às dez horas da noite, no verão, e trinta e quatro no inverno: de madrugada elas somem, mas à meia noite aparecem umas bem menores, e eu nunca consegui contar direito, porque as mais miudinhas embaralham a  vista. Eu às vezes fico pensando: se um sujeito conseguir contar todas as estrelas do céu, ele vai ficar sócio de Deus”.
            As duas moças de Praga se levantaram, e uma prometeu à outra que  iria ensinar-lhe como fazer o doce de groselhas verdes. Não resisti, aproximei-me e lhes disse que eu também aprendera a fazer doce de groselhas verdes.
       - Como aprendeu? - indagou a jovem.
       - Com um homem chamado Oséas.


sexta-feira, 20 de maio de 2011

OS VINHEDOS DE ÁLAVA

De vez em quando ele deixava escapar uma frase em basco, e isso me perturbava. Traduzia-a, sorrindo, e explicava que seu excurso, em língua estrangeira, não era rigorosamente fiel ao pensamento. Txori txikia, abesti txikia, citou o provérbio de seu povo, segundo o qual o pássaro canta de acordo com o seu tamanho. Poderia ter acrescentado que o canto também depende da plumagem e da proporção entre o corpo e as asas, mas não era preciso. O ditado popular lhe bastava.


Conversávamos em uma taverna, perto de Durango, em região perigosa, segundo os serviços de inteligência do governo espanhol. Dali procediam, narravam os informes, os mais duros combates de Euzkadi Ta Azkatasuna, que vocês conhecem pelas iniciais. Não tínhamos por que nos prevenir. Naquele distrito, todos sabiam, os delatores eram tratados a bala de nove milímetros. As pessoas chegavam e o saudavam, em basco; ele respondia com parcimônia. Com parcimônia também bebia seu vinho, de Alava.


- Não há segredo. Nós somos mais apegados a esta terra do que talvez outros sejam a seu torrão, porque estou certo de que aqui nascemos. Não há, na memória de nosso povo, caminhos mais longos do que os atalhos entre os vales dos Pirineus, de Navarra ao mar. Mas todo povo é a sua terra.


Ergueu o copo de vinho, olhou-o, o tom rubro contra a luz da tarde. Depois partiu uma fatia do queijo caseiro, vindo de bem perto, de Ermua.


- Somos feitos de nossa terra. É isto que a Bíblia quer dizer. Deus não buscou o barro longe, para esculpir  Adão. Arrancou-o dali mesmo, do chão do Paraíso. Por isso, quando houve a transgressão, Deus o puniu, expulsando-o de seu país. Neste vinho, que alegrará meus nervos e meu sangue, está a boa terra basca. A vinha a buscou, em suas raízes, temperou-a com o sol e refrescou com estas águas, que aqui não faltam. E este queijo é também terra de nosso país. Terra que se abrandou no caule do capim. Veio a ovelha e o comeu. Quando o bebemos e assamos o cordeiro, é a terra feito seiva e carne que irá transformar-se em nossa seiva e nossa carne. Como pode alguém viver longe de seu canteiro?


O taverneiro ouvia-o e o aprovava com a cabeça. Estávamos próximos do balcão, em um canto. Naquela hora eram escassos os fregueses, que chegariam quando a tarde envelhecesse.


- Temos muitos compatriotas na América, mas no peito de cada um deles haverá sempre o calor deste vinho. Eles não se foram porque quisessem. Um dia voltarão, ainda que tenham que voltar em seus filhos e em seus netos. Mas, embora eu compreenda suas razões nunca sairei deste chão. Vou até a muga, isto é, a fronteira,  de nosso país, mas nunca a transponho. Tenho medo por dentro. Temo que, saindo de Euskadi, não o reencontre, ao voltar. E sempre me dá a impressão de que estarei saqueando os outros, se beber de seu vinho e comer de seu pão.


Senti-me incomodado com a observação. Afinal, eu estava ali, bebendo do seu vinho basco, comendo do pão e do queijo daquelas terras. Ele sentiu meu ligeiro constrangimento e se desculpou. Talvez estivesse sendo exagerado, mas era o problema da língua. Citou-me então a outra versão, mais robusta, do provérbio do pássaro e seu canto: Zakur aundiak, zaunka aundia. O ladrido é do tamanho do cão.


      - Você não é forasteiro. Você é viandante. Esta diferença não é tão pequena como possa parecer. Somos hospitaleiros, sempre fomos. Mas, tocar em nossos campos é rasgar as nossas terras, como fazem os de Castela, é como violar as nossas mulheres. Recebemos bem todos os estrangeiros, e deles será o nosso pão e o nosso vinho, se trouxerem a paz nos olhos, mas quando trazem a cobiça na mira de suas armas, temos o dever da resistência.


Pouco a pouco a taverna foi se enchendo de bascos que deixavam o trabalho e chagavam para o vinho do anoitecer. Alguns falavam a língua da terra, em sua pureza. Outros a misturavam com o castelhano. E havia, entre eles, trabalhadores andaluzes, que pediam os vinhos secos de Cádiz e o brândi de Jerez.


- Estes tampouco são forasteiros. São expulsos de sua pátria andaluza, mas não pelo castigo de Deus. Como você vê, eles têm seu caráter, e renovam o sangue com o vinho de sua própria terra.